Qual a relação que um problema visceral poderia ter com sintomas neurológicos como dores de cabeça ou parestesia de membros? Acompanhe o que uma disfunção hepática pode acarretar.
Primeiro de tudo, todos os nossos órgãos têm um padrão de dor referida, ou seja, apesar de haver um problema em um local, a dor surge em outro. Um caso clássico disso é quando ocorre um infarto. A pessoa que está infartando relata dor em todo o membro superior esquerdo, mandíbula, pescoço e peito. Outro exemplo são as mulheres com cólica menstrual que além de referirem dor em abdome baixo, relatam dores na coluna lombar.
Dores de origens intestinais e renais também são fonte de dor na lombar e no caso dos intestinos e útero, a dor referida pode chegar em alguns pontos dos membros inferiores, levando a crer que seja um sintoma do nervo ciático quando na verdade é uma disfunção visceral. Isso acontece, porque o sistema nervoso autônomo (que inerva os órgãos) faz parte do sistema nervoso periférico (que inerva a pele, músculos etc). Dessa forma, nem sempre o cérebro consegue interpretar exatamente onde está a origem da dor. No caso dos dois órgãos citados, a origem de suas inervações se dá na colunas lombar e sacral de onde também sai o nervo ciático, por exemplo.
Claro que aderências ou cicatrizes importantes nos órgãos localizados no baixo ventre como os já citados podem sim causar uma sobrecarga nas vértebras lombares. Pacientes com históricos de cirurgias de apendicectomia (retirada do apêndice), abdominoplastia e cesariana estão propensos a ter lombalgias que em alguns casos se não tratados adequadamente, podem evoluir para algo mais sério como uma hérnia discal. Mas isso é assunto para uma outra postagem, pois o assunto que escolhi para hoje é o do título: uma disfunção hepática pode causar sintomas neurológicos? Como e por quê?
Bom, todo mundo já deve ter ouvido alguém reclamar que estava com uma dor de cabeça depois de comer algo que não tenha feito bem, certo? Vamos entender porque isso ocorre.
Primeiro de tudo, o fígado é responsável por inúmeras funções fisiológicas a saber:
Mas existe uma outra função do fígado: a conversão de amônia (NH3) em ureia para que esta seja excretada em nossa urina. Mas de onde surge a amônia? Antes de chegarmos nelas, falemos bem resumidamente da digestão das proteínas. Quando nos alimentamos desse macronutriente (através de carnes, ovos, laticínios etc), a proteína começa a ser quebrada em “pedaços” menores para que ela possa ser absorvida no intestino. Ela passa por esse processo graças a enzimas produzidas por 2 órgãos: estômago e pâncreas.
No estômago, a proteína é quebrada pela primeira vez pela enzima pepsinogênio/pepsina. Ao chegar no intestino delgado na forma polipeptídeos, eles se transformam em aminoácidos graças à ação de enzimas do pâncreas (tripsina, quimotripsina, carboxipolipeptidase e proelastase). Dessa forma, esses aminoácidos conseguem ser absorvidos pelo intestino delgado sendo metabolizados no fígado por onde chegam pela veia porta. Alguns aminoácidos que ainda não foram utilizados pelo organismo sofrem um processo chamado desaminação, o que faz surgir a amônia. Ela então pode seguir dois caminhos: formação de outros aminoácidos ou ser convertida em ureia para ser enviada aos rins e eliminada pela urina.
O problema é quando o fígado não consegue dar conta de transformar a amônia que não está sendo aproveitada pelo organismo. A NH3, então, fica circulante em nossa corrente sanguínea e, ao chegar na circulação encefálica, ela acaba se combinando com uma substância chamada glutamato cerebral ou ácido glutâmico, um aminoácido e um neurotransmissor de nosso sistema nervoso central. Quando ocorre a reação da amônia com o ácido glutâmico, há a formação de glutamina e a, consequente, diminuição do glutamato cerebral. A sua redução prejudica funções importantes do sistema nervoso e dessa forma começam a surgir sintomas neurológicos a saber:
Esse quadro é conhecido como encefalopatia hepática e é dividido em 4 graus sendo mais grave quanto maior for o grau dessa doença, podendo levar ao coma e morte.
A parestesia ou formigamento/perda de sensibilidade pode ser confundida com outros problemas ortopédicos, tais como síndrome do túnel do carpo bilateral, ciáticas etc. A não ser que você esteja grávida (pelo inchaço comum apresentado por elas, causando compressão de nervos) ou seja extremamente azarado(a), a razão desses sintomas pode ser uma disfunção do fígado. Haveria alguma relação com uma dieta hiperproteica já que a amônia surge através do consumo de proteínas? O Dr. José Carlos Souto afirma que não. Para entender melhor, sugiro também a leitura do ótimo artigo dele caso te interesse mas adianto um trecho:
“A única referência bibliográfica que encontrei relacionando de forma adversa uma dieta com mais proteínas e fígado, foi um relato de caso em que 2 pacientes com Anorexia tratadas em regime de hospitalização desenvolveram hiperamonemia, isto é, excesso de amônia no sangue (que ocorre quando o fígado precisa remover o nitrogênio de um excesso de aminoácidos oriundos de uma dieta hiperproteica) quando foram submetidas a uma alimentação hiperproteica na forma de suplementos. E o único envolvimento do fígado nesses casos foi o de produzir o excesso de amônia em virtude de um excesso de proteínas inadvertidamente oferecidas na forma de SUPLEMENTOS. O fígado, em si, não foi afetado nesse processo. Ou seja, mesmo quantidades absurdamente elevadas de proteínas na dieta, tóxicas devido a hiperamonemia, não foram tóxicas para o fígado. Parece, de fato, ser virtualmente impossível prejudicar o fígado com proteínas. Já com açúcar… (Welsh, E., Kucera, J. & Perloff, M.D., 2010. Iatrogenic hyperammonemia after anorexia. Archives of internal medicine, 170(5), pp.486–488.)”
O Dr. Souto fez uma longa pesquisa com inúmeros artigos relacionando dieta com problema hepáticos (incluindo a esteatose ou gordura no fígado) e o único artigo que ele achou sobre uma dieta hiperproteica foi este citado acima e mesmo assim foi uma dieta com ingestão de proteínas sintéticas. Portanto, a não ser que você se entupa de whey protein, caseína, proteína isolada de soja ou outras, não há com que se preocupar. Evidentemente, que depois de os sintomas terem sem instalado, é recomendado que a ingestão de proteína diminua para ajudar na recuperação.
Na visão osteopática, de que forma esse problema seria abordado? Antes disso, é preciso entender como a sistema nervoso autônomo atua nas vísceras.
É importante destacar um dos principais componentes da função visceral: o sistema nervoso autônomo (SNA), responsável pelo controle de atividades das quais não somos capazes de controlar conscientemente. Portanto, quando nos assustamos e nosso coração dispara é o SNA que se ativa fazendo com que haja o aumento de nossa frequência cardíaca.
O SNA é dividido em simpático e parassimpático, sendo o primeiro associado a atividades que nos faz gastar energia, citando novamente o exemplo acima, assim como o aumento da pressão arterial e de nossa respiração. Está associado com o sistema de luta ou fuga. Quando nos encontramos em uma situação de perigo, o sistema simpático entra em ação nos preparando para entrar em combate ou fugir de algo potencialmente perigoso. Isso é bem comum acontecer em situações nas quais um animal caça um outro ou até quando nos deparamos com um animal perigoso. Já o sistema parassimpático é responsável pelo repouso e acúmulo de energia, portanto, este atua em nosso processo de digestão até a evacuação aumentando o peristaltismo dos órgãos e estimulando a secreção de substâncias que atuam na digestão como o suco gástrico e a bile. Em grande parte de nossas funções fisiológicas, o simpático e o parassimpático atuam em oposição ao outro.
Acontece que os nervos responsáveis por controlar essa ação inconsciente passam por estruturas nas quais um osteopata consegue atuar: as vértebras. Ao lado da coluna cervical, passando pela torácica e chegando na lombar passa uma estrutura chamada cadeia látero-vertebral onde estão localizados os gânglios simpáticos. Em cada nível da coluna, um conjunto destes gânglios é responsável pelo controle de vários órgãos. Por exemplo, e de forma bem resumida, dos segmentos T5 a T9 (quinta a nona porção da coluna torácica) saem o nervo esplâncnico torácico maior que é responsável pela inervação simpática de estômago, fígado, pâncreas e porção inicial de duodeno. É natural pensar que uma disfunção de algumas destas vértebras possa favorecer uma disfunção visceral já que a condução nervosa simpática estará prejudicada pela falta de mobilidade vertebral.
Já, em relação à inervação parassimpática, grande parte de nossos órgãos é suprida pelo nervo vago (o X par de nervo craniano) cujo trajeto de forma resumida se dá através da passagem pelo forame jugular (localizado na base de nosso crânio), bainha carotídea (região de pescoço), acessando o tórax pela entrada torácica. O nervo vago inerva todos os órgãos torácicos e abdominais com exceção da porção final de intestino grosso, bexiga, útero e genitais cuja inervação se dá pelos nervos esplâncnicos pélvicos localizados na porção sacral da coluna.
Existem ainda, o controle da salivação e de secreções lacrimais e nasais além do tamanho de nossas pupilas que é realizado por outros pares de nervos cranianos (controle parassimpático): III – nervo óculo-motor; VII – nervo facial e; IX – nervo glossofaríngeo; e pelo gânglio cervical superior e os 3 primeiros segmentos torácicos (controle simpático).
Disfunções no crânio, nas primeiras vértebras cervicais ou do sacro prejudicam a inervação parassimpática de nossos órgãos.
Quando qualquer de uma dessas inervações encontra-se prejudicada, pode ocorrer uma disfunção visceral gerando sintomas desagradáveis ao paciente, seja uma dor de estômago pelo excesso de suco gástrico ou má digestão e ânsia de vômito pela diminuição do tônus parassimpático ou até arritmias e falta de ar.
A partir do momento que se corrigem essas disfunções devolvendo à normalidade a inervação autônoma do órgão em sofrimento, é possível realizar técnicas específicas viscerais.
Além, disso, o diafragma exerce papel importante na função hepática, pois além de ter um íntimo contato com o fígado, o diafragma se conecta a este órgão através dos ligamentos: coronário, triangulares direito e esquerdo e falciforme. Outros órgãos também se conectam ao fígado mas para não me estender ainda mais, ficarei apenas com o diafragma.
Dessa forma, fecha-se uma parte do raciocínio osteopático para o tratamento desses sintomas causados pela má função hepática e alta circulação de amônia pela corrente sanguínea.
Um bom osteopata avaliará e tratará as primeiras vértebras cervicais e base de crânio, colunas torácica e tóraco-lombar, diafragma, além de verificar os órgãos vizinhos ao fígado, com especial atenção ao estômago, vesícula biliar e duodeno (mas não se limitando a eles caso o profissional ache necessário tratar outras vísceras) e realizando técnicas hemodinâmicas no fígado para melhorar a circulação hepática.
Lembrando que existem formas de se avaliar a concentração da amônia sérica no sangue através de exames laboratoriais. Ou mesmo pela avaliação da concentração de ureia: caso ela esteja muito baixa, isso pode ser um indicativo de aumento de amônia circulante (ou indicar uma dieta pobre em proteínas – tudo depende de uma boa avaliação).
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